Hamlet
Fui ver “Acordes” e, com meia hora, deixei o teatro Oficina. Não era a perspectiva de um longo espetáculo, que é sempre a preocupação que as pessoas têm, mas a sensação de que estava ali, no público, sendo uma vez mais tratado como massa, manipulado até.
Havia também a sensação de que era a mesma peça, uma vez mais, agora com uma casca de Bertolt Brecht e Paul Hindemith, mas sempre e sobretudo a mesma peça. Nessa mesma peça, o papel do público é de coro, como alegoria da cidade ou da nação, e não de indivíduo.
“Hamlet“, tão longa quanto, pelo que anunciam os guias, é encenada por Ron Daniels, que aprendeu teatro com Zé Celso, sendo dirigido por ele, mas que fez sua própria história de diretor na Inglaterra. É outra coisa, inteiramente.
Para pegar um detalhe, que remete à encenação algo legendária que Daniels realizou com aquele que viria a ser o maior ator no palco londrino, Mark Rylance, Hamlet veste pijama em várias cenas. Naquela montagem da Royal Shakespeare Co., mais de duas décadas atrás, foi o que marcou, o que causou maior estranhamento.
Independente do que motivou o diretor então, com os relatos falando de um Hamlet no sanatório, agora Thiago Lacerda também faz todo o solilóquio “ser ou não ser” e a cena seguinte, do “convento”, vestindo pijama.
No caso, o figurino parece se inspirar indiretamente na vestimenta do Fantasma, como descrita em uma das três edições publicadas à época de Shakespeare, que fala em “nightgown”, camisola.
Se no caso do Fantasma o efeito original era tornar mais pessoal, menos social ou política, a cena de Hamlet no quarto da mãe, agora é também assim. O “Hamlet” de Ron Daniels não é político, social ou alegórico: é francamente pessoal, individual.
Remete ao indivíduo Hamlet. Ser humano único, alguém, qualquer um, como eu e todos os que tomávamos quase o Tuca inteiro, na apresentação que vi. A grandeza, o sangue nobre de Hamlet, num homem de pijama. Muito diferente da massa do Oficina.
Descrita assim, é só uma opção mais ou menos formal, que Daniels fez em contraste com Zé Celso. Poderia dar certo ou não. O que torna este “Hamlet” tão bom é a interpretação que Thiago Lacerda, conduzido pelo experiente diretor, consegue apresentar no palco.
Ator de televisão, nascido e criado em novelas, ele provoca uma incontornável resistência no espectador _em mim, ao menos, e só nas primeiras cenas. Acaba tendo de longe a melhor interpretação, em meio a atores muito mais tarimbados, desenvolvidos do que ele.
O Polônio de Roney Facchini também está bem, sobretudo no humor verbal, se deliciando com as palavras. Mas a coisa para aí: de Cláudio e Gertrudes a Ofélia e o Fantasma, as cenas passam sem maior significado além da expectativa pela volta do príncipe.
É inevitável creditar muito da qualidade de Thiago Lacerda à direção, que o fez alcançar tamanha concentração, retrato acabado do homem moderno, mais atento a si mesmo do que ao Estado, aos outros.
Também muito da graça de Facchini se deve à tradução de Marcos Daud e Daniels e à edição cuidadosa do texto, bastante cortado, mas mantendo cenas que geralmente são as primeiras a cair _como a de Polônio com seu espião, Reinaldo.
Além da edição, também a velocidade que Daniels imprimiu à fala de seus atores permitiu limitar a duração da apresentação a duas horas e meia. É um feito, em português, que outras montagens só alcançaram à custa de tornar a peça disforme.
Lacerda, Facchini, a tradução, a edição, o ritmo: tudo isso, alcançado pelas mãos de Ron Daniels, explica por que “Hamlet”, que encerraria temporada no fim de semana, volta em janeiro, como anunciou o protagonista no palco, com merecido orgulho.
PS – Sei que “Acordes” vai muito além daquela impressão inicial, pelo me relataram outros espectadores. Mas tenho certeza, até pelo teatro lotado, de que também volta em janeiro, quando pretendo acompanhar até o fim.