La Comida/Bom Retiro 958 Metros
Na avenida Corrientes, no fim das férias de julho, dei de cara com um cartaz de uma peça de Newton Moreno, direção de Cibele Forjaz. “La Comida” não estava na Broadway argentina, mas a vários quarteirões dali, off-Corrientes, como se diz, no Teatro del Abasto, que lembra o paulistano Viga. Não tinha visto a montagem nacional, cinco anos atrás, e aproveitei, até para me situar melhor na invasão brasileira de Buenos Aires, onde se ouve português em toda parte.
A primeira impressão foi confirmar como os atores argentinos são preparados e dispostos, como dominam e se entregam a seu ofício, lembrando a regra dos atores ingleses.
Já havia tido uma demonstração no dia anterior, ao ver “Sallinger”, de Bernard-Marie Koltés, no Teatro San Martín, uma espécie de National de Buenos Aires, um teatro estatal cujas produções servem de contraste aos teatros comercial e alternativo _sem similar no Brasil. E Koltés não é fácil, com aquela verborragia toda, bifes sem fim, antidramáticos.
Em “La Comida”, destaca-se José Mehrez, que participa, em papéis muito diversos, dos três “ensaios dramáticos sobre canibalismo” que compõem, no título original, “A Refeição”. Os dois primeiros, sobre marido e mulher e sobre executivo e mendigo, são curtos e algo previsíveis, sem maior registro. Mas o terceiro, sobre um antropólogo e um índio, este vivido por um Alfredo Urquiza também marcante, é uma prova para os argentinos de que existe dramaturgia no Brasil.
Serve também de introdução à antropofagia tão significativa para a cultura brasileira, seu “legado canibal” como descreve Moreno no programa. E prenuncia, como só agora eu descobri, o “Jaguar Cibernético” de Francisco Carlos, prova mais recente de vida na dramaturgia nacional.
Outros autores poderiam ser lembrados, para compor uma geração abençoada hoje no teatro do Brasil. Mas quem assistir “Bom Retiro 958 Metros”, em São Paulo, sairá com noção oposta. Vi pouco antes de embarcar para a Argentina. Seu texto, uma mistura crescente de lugares-comuns e presunção, torna a caminhada pelas ruas do bairro judaico-coreano-boliviano um martírio.
Anseia-se pelo momento em que haverá silêncio, palavra nenhuma.
É quase inexplicável, até porque seu autor, Joca Terron, editou poucos meses antes um número extraordinário da “Revista 18“, do Centro de Cultura Judaica, sobre o Bom Retiro, a partir de seus estudos _e do elenco_ sobre o bairro, voltados precisamente para a construção da peça.
Ouvi aqui e ali que o problema de “958 Metros” estaria no elenco muito jovem e, portanto, incapaz de enriquecer com suas experiências a dramaturgia de Terron, no modelo de colaboração adotado pelo diretor Antonio Araújo no Teatro da Vertigem. Não creio que seja a explicação, até porque algumas das peças anteriores da companhia, de autores mais curtidos no palco, também não se caracterizavam por grandes textos.
O que parece ter ocorrido desta vez é que a encenação, embora atinja momentos espetaculares, não consegue abafar as limitações do texto, como acontecia antes.
Na apresentação que vi, o lendário diretor nova-iorquino Richard Schechner, do Performance Group, de “Dionysus in 69”, estava assistindo “Bom Retiro 958 Metros” pela segunda vez. Talvez escreva sobre o espetáculo na próxima edição do “TDR” e daí eu consiga compreender que o diretor acertou de novo _e de novo eu demorei a perceber.
Mas não, o que vi foi uma encenação se repetindo na forma, em sua procissão, suas estações. Como Zé Celso, Antunes ou Gerald Thomas, Antonio Araújo segue em frente, sem cair, mas em momentâneo descompasso com o tempo.
PS – Leia também os textos de Nando Ramos e Valmir Santos.
Muito bom!!!
Saudades.
Beijo,
Iris
tks!