O Jardim
Desta vez estive em Curitiba de um dia para o outro, o bastante para confirmar que o trânsito não deve mais nada a São Paulo. Pouco resta de Jaime Lerner, do instante de renascimento que deu origem ao festival. Mas me parece, pelos relatos que tive por lá, que as eventuais limitações da programação neste ano teriam outra motivação: reflexo do teatro de grupo, a mostra sofre com a perda de energia que ele apresenta, não é de hoje.
Vão longe os momentos heróicos do movimento Arte contra a Barbárie. A geração de diretores e elencos cresceu, se estabeleceu e hoje se reproduz, muitas vezes com grande qualidade, mas sem nada que tenha ocupado seu posto de inovação, novidade, a não ser talvez o teatro musical e a comédia stand up _aliás, presentes no festival, como em edições anteriores, mas incapazes de tomar a boca de cena do protagonista, o teatro de arte.
Vi uma única peça, que havia perdido na curta temporada em São Paulo, mas arrisco dizer que dá esperança para todo o teatro. Não é a primeira nem sequer a melhor criação de Leonardo Moreira, mas em meio à apresentação num distante galpão de Curitiba a imagem que veio à cabeça foi de que alguém como eu, meio século atrás, em alguma plateia carioca de “A Falecida”, pensou a mesma coisa: sim, existe autor de teatro no Brasil.
Não o conheço, creio que jamais o vi, mas depois de três montagens _ou talvez já na primeira que presenciei_ é inquestionável o seu talento para a dramaturgia. Embora também goste, não acho que o encenador Leonardo Moreira esteja no mesmo estágio do autor. A escritura é de grande precisão, rigor formal, e também de uma exuberância que a encenação não consegue acompanhar, como se estivesse quase sempre um passo atrás.
Os pequenos problemas de “O Jardim” se devem à mise-en-scène, imagino, como se a cena não conseguisse dar clareza ao texto _ou como se se não conseguisse podá-lo aqui e ali, o que é função do diretor, para que florescesse ainda mais no palco. Mas isso pode ser bobagem, “um cisco no olho do entendimento”. Como ele mostrou em “Escuro”, que nunca vou esquecer, também o encenador consegue dominar plenamente seu ofício.
Em “O Jardim”, se o jogo das caixas e das cenas simultâneas por vezes se mostra confuso e pouco apurado, a passagem para a cena final, com o turbilhão de memórias na mente da personagem central, que sofre do mal de Alzheimer, traz um choque emocional como poucas vezes vivi em teatro. Curiosamente, é quando Leonardo Moreira abandona por inteiro a linearidade que o texto e a encenação decolam de uma vez, nesta terceira peça.
É o texto que deixa a maior marca, ao menos para mim: a maneira como Leonardo Moreira vai desvendando do que se trata, aos poucos, com pequenas pistas; as palavras que ecoam de uma cena simultânea para outra, de tempos em tempos, como fantasmas deixados pela casa; os conflitos tão diversos das três cenas, que afinal se complementam integralmente, para uma apoteose no palco e na mente do protagonista _e do espectador.
Mais que tudo, o que impressiona é a forma como “O Jardim” consegue transformar uma experiência que poucos tiveram, a convivência próxima com o mal de Alzheimer, em algo universal _como se na verdade estivesse na doença, na diferença, a essência de cada um na plateia. Não me identifiquei com nenhuma situação ou personagem específica, mas no final me senti mais representado na peça do que se participasse eu própria da cena.
Daí a fantasia de estar diante de Nelson Rodrigues, de um poeta dramático como ele. Mais um, no Brasil, coisa tão rara.
PS – Escrevi sobre as duas peças anteriores, “Cachorro Morto” e “Escuro“. E Lenise Pinheiro fotografou as três, “Cachorro Morto“, “Escuro” e “O Jardim“.