Evoé! Retrato de um Antropófago
Só vi agora, em vídeo, o documentário de Elaine Cesar e Tadeu Jungle sobre Zé Celso, “Evoé! Retrato de um Antropófago”, lançado na série Iconoclássicos. Quando consegui tempo, já havia saído de cartaz dos cinemas de São Paulo. O filme desnuda o diretor de maneira aparentemente impiedosa.
Ele se apresenta sem roupa boa parte do tempo, descreve o que a maconha representa e o que o ácido representou para ele, surge sem edição no que outros documentários talvez lapidassem mais para tornar mais compreensível o personagem. E costura suas mais de cinco décadas de teatro a partir do pensamento presente hoje, sempre aqui e agora.
Derruba muito do mito anterior que ainda o cerca, mas para reforçar outro, novo. Expõe-se seguidamente, com a certeza de que, quanto mais mostra, mais prova a verdade que revela. Apresenta-se absoluto, intocável. É insuportavelmente autoconfiante. Racional ao limite, sob a máscara _e todas as experiências tão reais_ da loucura.
Elaine, assim como Tadeu, participou da saga de quase uma década de “Os Sertões” e isso ecoa no filme, não só nas locações de Canudos, mas na aceitação de Zé Celso por inteiro, sem filtro. Já eu sou daqueles que viram todas as peças, algumas duas, até três vezes, horas a fio, e começaram a ratear.
Não faltam imagens deslumbrantes, em todas elas, algumas lembradas no filme, mas o gigantismo de “Os Sertões”, que exigia do espectador a renúncia de tudo mais, ultrapassou os limites individuais, ao menos os meus.
Zé Celso diz, a certa altura, que teatro é bom de fazer, não de ver. Ele mesmo vê pouco, quase nada. Com o tempo e as peças seguintes passei a compreender mais as palavras, quanto às suas encenações. Até a primeira “Cacilda” e pouco depois, reconhecia diálogo com o diferente nas encenações _com Shakespeare, com Bete Coelho, com o irmão Luís Antônio, sobretudo com Marcelo Drummond.
Aos poucos, o diálogo se tornou verdade revelada, ao menos para este espectador ateu, que passou a ver, tão-somente.
Da primeira vez que assisti “Ensaio.Hamlet“, não concordei com a cena dos atores, adaptada acrescentando que, além de “tragédia, comédia, história, pastoral, pastoral-cômica, histórico-pastoral, trágico-histórico, trágico-histórico-pastoral-cômico, com unidade de tempo e espaço, ou poema ilimitado”, também podiam representar Zé Celso.
É uma boa piada, talvez a que arranque mais gargalhadas, mas não me parecia então uma crítica correta: o Oficina não era uma fórmula ou um gênero, para mim. Passados quase oito anos, revendo agora a cena na remontagem de “Ensaio-Hamlet” apresentada pela Cia. dos Atores no Sesc Belenzinho, concordei. E ri muito.
Não sei quando foi que comecei a mudar e a não reconhecer mais as diferenças entre as peças do Oficina. Talvez tenha sido mesmo com a maratona de “Os Sertões”, que lembro como as cinco peças de cinco horas em cinco anos _embora fossem mais. Talvez tenha sido com “Cacilda 2”. Mas em algum momento passei a antecipar as peças como uma repetição sem trégua.
Em “Os Bandidos”, de Schiller, para muitos o melhor espetáculo de Zé Celso na segunda fase do Oficina aberta com “As Boas”, de Genet, no qual fui assistente de direção, eu já estava esgotado, pedindo pausa. Não consegui reunir forças para ver “Macumba Antropófaga”, baseada no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade.
Há pouco mais de uma semana, fui ver “O Assassinato do Anão do Caralho Grande“, de Plínio Marcos, com a esperança de que seria como “O Assalto”, de José Vicente, também encenada por Marcelo Drummond. Ele tem uma marca muito distinta de Zé Celso como diretor. É teatro de câmara, não de estádio. Mas não foi assim, desta vez.
Na pista do Oficina, com seus dois pólos de conflito, com sua projeção obrigatoriamente voltada para o público, pareceu antes uma peça de Zé Celso, até cenário e figurinos. É sempre bom rever Adão Filho, ator pelo qual tenho fascínio; também rever a última peça de Plínio Marcos, que remete ao circo pobre no Macuco, em Santos.
Mas faltou Marcelo Drummond ou, antes, sobrou o gênero Zé Celso.
PS – Sobre “Ensaio-Hamlet”, tantos anos depois, a impressão foi bem melhor. Ainda sufoca Shakespeare em besteirol carioca, na primeira metade, e a tradução de Millôr Fernandes usada como base ainda arranha _sobretudo depois de conhecer a tradução de Tristão da Cunha. Mas a segunda metade, a partir da cena da alcova, é um deleite trágico. A cena final com o diálogo dançando entre os atores, sentados, é um achado cênico.