‘Birdman’ e a Broadway
“Birdman” é um filme sobre a cultura cinematográfica hoje, com uma visão sarcástica e ao mesmo tempo amarga do que restou de Hollywood de fato –filmes de super-heróis, gibis filmados– e do que isso significa, em especial, para os atores.
É também –ou antes– sobre o teatro, sobre encenar uma peça séria, não musical, na Broadway, com as grandes e pequenas angústias que se interpõem, desde a desesperada construção dos personagens até as limitações contratuais e o egocentrismo dos colegas de elenco, passando por detalhes mil do dia a dia da produção teatral.
Registre-se que, embora um retrato fiel dos bastidores e até das estruturas físicas do teatro, no caso, o St. James, na rua 44, ele tem as suas imprecisões –como mostrar a crítica indo à estreia, não ao último dia das pré-estréias, como é convenção hoje; ou tratar “preview” como mero ensaio aberto.
(Indiretamente, o filme também apresenta traços do impacto da entrada das corporações cinematográficas na Broadway, com o bem-sucedido “O Rei Leão”, da Disney, e posteriormente com a tentativa fracassada do gibi encenado do Homem-Aranha, da Marvel.)
“Birdman” é sobretudo a tragédia da existência de um artista, o diretor mexicano Alejandro G. Iñárritu, que acerta as contas –expressamente, como anotou em entrevistas– com seus 50 anos e o que criou até aqui. O protagonista interpretado por Michael Keaton, diretor e ator da peça, é seu alter ego.
No caso, é uma existência colocada à prova ao pôr de pé uma obra de arte, com todos os obstáculos que se é obrigado a vencer, de toda ordem. É como se cada um dos outros personagens –com uma ou outra exceção, como a filha e o melhor amigo, produtor e agente– se insurgisse para aquilo não acontecer. Para o ápice da existência não acontecer.
Quem quer que tenha realizado uma produção teatral reconhece a situação. É flagrante o contraste entre os sentimentos do produtor e da filha, de amor e dedicação, e os dos demais personagens, de competição, quando não de solapar abertamente.
Daí a importância da epígrafe destacada pelo filme, de um dos últimos poemas de Raymond Carver (1938-88), escrito à beira da morte por câncer, aos mesmos 50 anos, e que teria sido inscrito em seu túmulo:
E você conseguiu
o que você queria desta vida, apesar de tudo?
Consegui.
E o que você queria?
Chamar-me querido,
sentir-me amado nesta Terra.
Carver escreveu também o conto que inspira a peça dentro do filme –e também aqui, registre-se, numa transposição com imprecisões– mas o que importa para “Birdman”, em particular para o protagonista, é mesmo sua trajetória, sintetizada nos versos epigrafados, sobre o amor.
Além do poeta e contista americano, Iñárritu teve outro modelo a guiar “Birdman”, declaradamente seu mentor, como professor de direção teatral por três anos na Cidade do México, o polonês Ludwik Margules (1933-2006), estabelecido no país a partir dos anos 50.
Embora um pouco mais jovem, Margules foi uma espécie de Ziembinski para o teatro mexicano, levando para lá seu conhecimento não só do teatro polonês, mas do russo. A Polônia da primeira metade do século 20, de onde saíram ambos, reunia personalidades como Grotowski, Kantor e o ator e dramaturgo Karol Wojtyla, futuro papa João Paulo 2º.
Margules, como relata o próprio Iñárritu, foi um diretor e professor rigoroso –um tirano– que deixou como maior ensinamento que a grande arte não está nos efeitos, no que é externo ao ator, e sim na verdade que este for capaz de achar e transmitir. Em suma, o polonês era contra “o ornamento, a pirotecnia”, como na Hollywood de hoje, com seus “elementos contrários à organicidade”.
Para encontrar essa organicidade, “Birdman” recorre seguidamente à alegoria trágica do salto para o voo ou suicídio, tão conhecida do palco, e às interpretações de Keaton, Edward Norton e todo o elenco, fortes e obviamente derivadas de muito ensaio.
De quebra, nas longas tomadas sem cortes, ecos de apresentação ao vivo, os atores denunciam sinais de vulnerabilidade. Percebe-se então o quanto “Birdman” tem de teatro –e o quanto se distancia da Hollywood que se denuncia hoje, de fato, não só pela pirotecnia, mas pela própria interpretação.
Uma passagem menor, de personagem menor, exemplifica por contraste o que está em jogo: Jeremy Shamos, ator de grande experiência na Broadway, faz um péssimo ator, em esforço próximo do insuportável para instilar verdade, sem conseguir, até que o autor-diretor-ator de Keaton, no meio do ensaio, derruba com seus supostos super-poderes um refletor sobre sua cabeça, salvando assim a peça.