Antunes vira Nossa Cidade pelo avesso, mas saudade da América sobrevive
Embora carregada de maneirismos modernistas próprios do teatro dos anos 30, “Nossa Cidade“, do americano Thornton Wilder, é muito mais sobre o passado, sobre uma vida melhor que não existe mais. Uma peça nostálgica sobre o povoado do título, com suas tristezas e alegrias interioranas, nas primeiras décadas do século 20.
São imagens como a lembrança da “velha cerca branca que ficava em volta da nossa casa”, citada pela protagonista Emily, de uma das duas famílias retratadas.
Foi isso que, imagino, levou o texto a receber o prêmio Pulitzer para drama, em 1938. É uma história americana, quase um quadro de Edward Hopper, mas não o pintor da metrópole e sim aquele das cenas semi-rurais do mesmo nordeste americano da peça _que se passa num povoado inventado do Estado de New Hampshire.
É um texto, à sua maneira, apaixonado pela vida americana, daí ser um favorito das produções regionais e escolares nos Estados Unidos.
No palco, o diretor Antunes Filho fez dele uma outra peça, quase o negativo do original: um contraste entre essa vida americana de sonho e os pesadelos intervencionistas que ela causou ao longo de um século no resto do mundo, em guerras, mortes, genocídio. O espetáculo no Sesc Anchieta é escancaradamente anti-norte-americano.
Curiosamente, porém, não é nesse engajamento contra o império ianque, contra seu militarismo mundo afora, que a montagem de Antunes funciona mais. É naquilo que “Nossa Cidade” tem de dramático, de saudade mesmo. As intervenções de texto feitas por Antunes, listando crimes históricos, por exemplo, resultam artificiais.
A nostalgia daqueles Estados Unidos remetem, no fundo, ao próprio encenador brasileiro. Seu anti-americanismo esconde, me parece, o seu oposto: o amor por aquela América hopperiana, da primeira metade do século 20. Um amor angustiado por ter assistido aos horrores que nos foram impostos pelos EUA, desde então.
Vale lembrar que Antunes, antes do teatro, foi um apaixonado pelo cinema. Sua “Nossa Cidade” talvez seja, antes de mais nada, uma resposta à famosa versão hollywoodiana de 1940, adaptada pelo próprio Wilder, que edulcorou tanto os trejeitos modernistas quanto o final triste, tornando “Our Town”, de fato, uma idealização da América.
Veja também a crítica de Carolin Overhoff Ferreira, de leitura bastante diferente da minha. E a coluna de Marcelo Coelho.