Cacilda, a cultura e os protestos de rua

Nelson de Sá

Viajei até Sorocaba no último fim de semana para ver “Cacilda!!!”, na nova unidade do Sesc na cidade _que lembra a do Belenzinho, inclusive no tamanho. É o “primeiro capítulo” da terceira peça do que, originalmente, seria uma tetralogia sobre Cacilda Becker. Deve ficar em cartaz por três semanas, entrando logo em seguida o “segundo capítulo”.

Explica-se: a um mês da estreia, querendo espelhar no palco _ou pista_ o que aconteceu nas ruas durante o mês de junho, no Brasil todo, Zé Celso adiou o segundo ato que já estava pronto e colocou no lugar uma outra parte da trajetória da atriz, agora sobre as passeatas de 1968.

Recapitulando, a primeira “Cacilda”, com Bete Coelho e outras no papel, acompanhou a infância e a juventude da atriz e, num salto, o coma e a morte. A segunda “Cacilda”, com Anna Guilhermina e outras, retratou o início da carreira, sobretudo no Rio, nas companhias profissionais e no Teatro do Estudante do Brasil.

A terceira “Cacilda”, agora, com Camila Mota, Sylvia Prado e Nash Naila, abre com a criação do Teatro Brasileiro de Comédia, no fim dos anos 40, e salta para as manifestações, no fim dos anos 60. (O “segundo capítulo” desta terceira “Cacilda” retoma a história mais ou menos linear do TBC e estreia daqui a um mês.)

É confuso, mas na apresentação de Sorocaba, no sábado, funcionou. O próprio Zé Celso, o co-diretor Marcelo Drummond e a protagonista Camila Mota descreveram logo depois que foi a noite em que a peça se encontrou, depois de dois fins de semana preparatórios em outras unidades do Sesc no interior, São José dos Campos e Araraquara.

Algumas cenas ou passagens, nas cinco horas do espetáculo, chamaram mais a atenção.

A primeira cena, com Marcelo e Camila como Walmor Chagas e Cacilda Becker se reencontrando depois do suicídio do grande ator, é ao mesmo tempo emocionante e iconoclasta. Marcelo está muito parecido com Walmor, não só fisicamente, eles que aliás interpretaram o papel de Hamlet, e traz a peça toda para aqui-e-agora, tanto quanto as cenas de manifestação.

Ao longo de quase toda a primeira metade, dedicada ao TBC, o que se vê é uma comédia muito engraçada, talvez inspirada por “A Mulher do Próximo”, texto que abriu o teatro em 1948. E nela o próprio Zé Celso, que interpreta Franco Zampari, tem uma interpretação desconcertante, de tão desarmada e cômica. Lembra, até fisicamente, Woody Allen.

Uma terceira passagem de efeito é a presença do filho de Sylvia Prado, nos braços da mãe, representação do filho recém-nascido de Cacilda e metáfora do nascimento do TBC. É um bebê, mas que aceita as luzes, os olhares todos, as câmeras que projetam seu rosto para três telas gigantes. Ele sorri toda vez, não falha uma, relatam Sylvia e o diretor Zé.

Outra cena ainda é o “Pega-Fogo” de Nash Naila, atriz pernambucana que entrou para o Oficina nesta montagem e que, mais até do que a representação de passeatas, retrata em seu próprio corpo _como o menino da peça que marcou os primeiros anos do TBC_ o jovem entre rebelde e niilista que foi para as ruas em junho.

“Cacilda!!!” não tenta, ao contrário de tantos desde junho, direcionar as manifestações para esta ou aquela bandeira. Meio que espelha as ruas, em suas muitas facetas e em outras mais, que vai encontrando na memória de quase meio século atrás. Se direciona para algum lado, é o de introduzir cultura no movimento, como defendeu Zé Celso.

Nos protestos de junho, de fato, faltou cultura, tão presente nas linhas de frente de 1968. Mas é fato também que a ponte começou a ser construída _e este blog Cacilda estava lá, com as câmeras de Lenise_ nos encontros do Cultura Atravessa convocados por Ney Piacentini e que contaram com membros do MPL, o Movimento Passe Livre.

Do texto de Roberto Schwarz, que já foi tão próximo e tão distante de Zé Celso desde os anos 60, no primeiro dos encontros no Oficina:

O Brasil passou 20 anos imerso no otimismo quanto à nova ordem capitalista, a qual de fato lhe permitiu avançar muito, ao mesmo tempo em que criava problemas crescentes, aqui e mundo afora. A cegueira para essas contradições, alimentada pela ideologia marqueteira oficial, pesava como um tapa-olho sobre a inteligência do país, que perdeu contato com o avesso das coisas, sem o qual não existe vida do espírito. Pois bem, a energia dos protestos recentes, de cuja dimensão popular ainda sabemos pouco, suspendeu o véu e reequilibrou o jogo. Talvez ela devolva à nossa cultura o senso da realidade e o nervo crítico, sem falar no humor, que nos seus momentos altos esta sempre teve.

Pois bem, está quase tudo lá, em “Cacilda!!!”.