Cacilda https://cacilda.blogfolha.uol.com.br Blog de teatro Mon, 29 Nov 2021 21:38:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Abundante, ‘Ítaca’ abre a cortina para as guerras contemporâneas https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/abundante-itaca-abre-a-cortina-para-as-guerras-contemporaneas/ https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/abundante-itaca-abre-a-cortina-para-as-guerras-contemporaneas/#respond Fri, 27 Jul 2018 20:06:07 +0000 https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/itacaodisseia-320x213.jpg https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/?p=17083 Ítaca – Nossa Odisseia
★★★★★
Sesc Consolação – Ginásio Verde (2º andar), r. Dr. Vila Nova, 245, São Paulo. Qui. a sáb., às 20h30; dom., às 18h30. Até 5/8. R$ 15 a R$ 50. 16 anos

Como reafirma “Ítaca – Nossa Odisseia”, o teatro de Christiane Jatahy vai muito além da ligação com cinema, que é o que se costuma enfatizar. Os experimentos em dramaturgia são até maiores do que a opção formal por usar vídeo.

E na verdade, para começar por aí, o próprio recurso à imagem reproduzida é dinâmico, integrado, jamais externo à cena. Isso tanto na captação pelas câmeras, agora na mão dos atores, quanto em sua projeção na tela/cortina que domina magnificamente o cenário.

Também a dramaturgia se construiu conjuntamente, não enxertada à encenação. O texto foi editado pela diretora a partir de improvisações dos atores e depoimentos de refugiados, além do poema épico de Homero.

Duas passagens do clássico são destacadas para compor os dois “lados” da peça: Penélope com os pretendentes, em Ítaca, e Ulisses “a caminho de Ítaca”, preso a Calipso.

Em ambos os lados, daí o complemento “Nossa Odisseia”, o espetáculo se volta à oposição de homens e mulheres hoje. E em ambos o olhar é sobretudo aquele da mulher, como Penélope esperando Ulisses ou Calipso tentando não perdê-lo.

É “Nossa Odisseia” também porque é do Brasil que se trata, como explicitado nas falas do lado de Penélope. Um dos pretendentes fala grosseiramente da personagem, que remete nesse início à ex-presidente Dilma Rousseff:

“Ela chora enquanto o país afunda. Fica tecendo histórias sobre nós, mas na verdade gosta que a gente viole esta casa… Podemos votar a tua destituição… Vai melhorar! Depois das eleições!”. O público ri, até a ameaça de violação se cumprir.

No outro lado, de Ulisses com Calipso, o que se tem não é esse homem abusador, mas o homem recusando a mulher, querendo abandoná-la.
Em tempo: no espaço bi-frontal, metade do público vê uma das cenas, metade outra, até trocarem de lado e tudo recomeçar —no final, sobem as cortinas e os dois lados se integram.

Na apresentação, sons de um lado vazam para o outro, com falas que ecoam mais, como esta de Calipso, ao que parece expressa duas vezes: “A guerra não é declarada, ela é permanente”.

Como se percebe logo, Jatahy empreende um acúmulo de camadas de significado e forma. A riqueza barroca de elementos que vai introduzindo lembra a escrita de Shakespeare ou as encenações de Zé Celso e Antonio Araújo.

A proximidade que alcança quando trata de homens e mulheres ou do Brasil não se reproduz, no entanto, quando a questão se volta mais diretamente aos refugiados. É sobretudo quando os lados se juntam, ligados por água —como o mar Mediterrâneo que os imigrantes africanos e árabes tentam atravessar e no qual tantos morrem.

Os conflitos se multiplicam, ouvem-se até palavras em árabe, mas a experiência e a compreensão do público brasileiro sobre a tragédia dos refugiados é diferente daquela dos europeus —franceses e portugueses— que viram o espetáculo anteriormente.

De todo modo, os depoimentos lidos ou representados, dos imigrantes entrevistados para a peça, são pungentes por si, por mais que sua tragédia possa ser percebida aqui como distante.

Vistas na estreia, com mudanças de elenco e cenário reconstruído, as três partes desta “Ítaca – Nossa Odisseia” por vezes se alongaram, perderam ritmo, mas o resultado foi abundante, a ser assimilado e maturado aos poucos na produção local.

Um elemento que volta à mente sem parar são as cortinas, que servem de “muro” a separar alegoricamente os muitos lados em conflito na cena. Quando elas se levantam, a guerra é aberta e desesperada. A execução técnica parece ser complexa, mas a imagem não poderia ser mais singela e afiada.

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Cia. Hiato carrega o público em suas viagens com ‘Odisseia’ https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/2018/06/14/cia-hiato-carrega-o-publico-em-suas-viagens-com-odisseia/ https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/2018/06/14/cia-hiato-carrega-o-publico-em-suas-viagens-com-odisseia/#respond Thu, 14 Jun 2018 05:00:40 +0000 https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/I2K0036-320x213.jpg http://cacilda.blogfolha.uol.com.br/?p=16968 Odisseia
★★★★
Sesc Avenida Paulista, av. Paulista, 119. Qui. a sáb.: 19h. Dom.: 17h. Até 8/7. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 18 anos.

Talvez seja opção da encenação, um pouco como o próprio poema em que se baseia, mas esta “Odisseia” é um apanhado de histórias, de peças diferentes. Não é uma única narrativa, assim como não é uma trajetória única aquela da Cia. Hiato, que está comemorando 10 anos.

Leonardo Moreira, autor e diretor do grupo, parece ter decidido dar voz a cada um dos membros e buscar no palco a integração de suas histórias. É um risco, com resultado ainda em desenvolvimento.

“Odisseia” foi apresentada primeiro em Atenas e chega a São Paulo com quase uma hora a mais. (A bem da verdade, nasceu em 2017 na Holanda, com apenas um de seus monólogos, de Luciana Paes como Calipso, e depois passou por um “estudo” em setembro na Casa Palco, em São Paulo.)

Cada ator da Hiato conta um pouco da sua história, mesclando-se aos personagens de Homero. Quem nunca aparece no palco é Ulisses, representado, como se descobre aos poucos, pelo próprio público.

Na festa que é “Odisseia”, o espectador é aquele que retorna, que reencontra a companhia —depois de dez anos de guerra de Troia e outros dez no caminho de volta.

Em uma década de Hiato, desde a estreia com “Cachorro Morto” (2008), na qual os personagens já traziam os nomes dos atores, a marca é essa costura entre a realidade e a ficção.

Desta vez, isso é pronunciado já na primeira cena, com a entrada de Aura Cunha. Ela conta a história do pai, que saiu de casa como Ulisses, e o que viveu desde criança, a exemplo do filho de Ulisses, Telêmaco, que abre a “Odisseia”.

Produtora da companhia, não atriz, Aura faz desde logo a cena mais tocante —e o faz repetidamente, como confirmam relatos dos ensaios abertos e das apresentações. É intérprete de grande alcance emocional, empatia, concentração.

Em contraste com essa dramaticidade inicial, ainda no primeiro e mais aperfeiçoado dos três atos de “Odisseia”, surge no palco uma Luciana Paes hoje muito diferente daquela do início da Hiato.

Sua plenitude como comediante nem se limita mais à companhia, avançando pelo improviso de “A Gente se Vê por Aqui”, talvez o melhor da recente MITsp, e também pela comédia popularesca de “Hamlet ao Molho Picante”.

Como Calipso com Ulisses, Luciana conta como se prendeu por tempo demais ao amante chileno, até deixá-lo escapar, esgotada, num relato de extrema exposição pessoal.

Os quadros seguintes arriscam formatos muito variados, alguns menos lapidados, como a interpretação de uma carta da mãe de Aura por Fernanda Stefanski, outros mais, como a Circe libertina e sedutora de Maria Amélia Farah.

Paula Picarelli, que já vem de um solo independente no ano passado, ergue uma Atena que remete ao melhor dos monólogos anglo-americanos recentes, de autores-atores como o suicida Spalding Gray.

Com a deixa de estimular Ulisses ao confronto, ela se rebela contra a política contemporânea, brasileira sobretudo, em comentários cada vez mais furiosos —dos quais se pode discordar, mas com os quais é inevitável se identificar quanto à forma: o ódio.

Se Paula, firme e incisiva como Luciana, é hoje muito diversa daquela de “Escuro” (2009), Aline Filócomo é como uma reserva da vulnerabilidade, da fragilidade juvenil dos primórdios da companhia que reuniu tantas atrizes.

Mas é ela quem questiona e desmonta a fidelidade de Penélope, que espera 20 anos por Ulisses, jogando contra o próprio personagem com um caraoquê de canções românticas e com vídeos em que compara seu amor ao de cão.

As quatro horas e meia passam rapidamente, leves, ajudadas pela entrada, quando o público bebe pinga e conversa com o elenco, o que se repete nos dois intervalos, quando também se pode comer.

Dito isso, diferentemente dos demais espetáculos da Hiato, inclusive com os amadores de “Amadores” (2016), este parece não ter passado pelo apuro de dramaturgia de Leonardo Moreira. Novamente, é como se ele quisesse, para estes dez anos, abrir o microfone.

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